Meninos e meninas têm as mãos queimadas por ácido e perdem digitais na quebra da castanha do caju. Mesmo após denúncias, problema persiste no Rio Grande do Norte
Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*
da série especial Promenino*
Enviado a João Câmara (RN) - Olhe a ponta do seu
dedo. Repare no conjunto minúsculo de linhas que formam sua identidade.
Essa combinação é única, um padrão só seu, que não se repete. As
crianças que trabalham na quebra da castanha do caju em João Câmara, no
interior do Rio Grande do Norte, não têm digitais. A pele das mãos é
fininha e a ponta dos dedos, que costumam segurar as castanhas a serem
quebradas, é lisa, sem as ranhuras que ficam marcadas a tinta nos
documentos de identidade.
O óleo presente na casca da castanha de caju é ácido. Mais conhecido
como LCC (Líquido da Castanha de Caju), esse líquido melado que gruda na
pele e é difícil de tirar tem em sua composição ácido anacárdico, que
corrói a pele, provoca irritações e queimaduras químicas. No vilarejo
Amarelão, na zona rural de João Câmara, as castanhas são torradas – além
de corroer a pele, o óleo é inflamável – e quebradas em um sistema de
produção que envolve famílias inteiras, incluindo as crianças.
O óleo é pegajoso. Basta pegar uma castanha e quebrá-la para ficar
com a pele manchada por alguns dias. Nem todas as crianças e os adultos
que trabalham no processo sabem que o óleo é ácido. Muitos acham que a
mão fica assim machucada por conta da água sanitária utilizada para
tirar o preto encardido da mão depois de horas seguidas manuseando e
quebrando as castanhas torradas. “Se fosse assim, as pessoas que usam
água sanitária para limpeza estariam roubadas! É o óleo LCC que tem uma
ação irritante, ele é cáustico, produz lesões e chega a retirar as
digitais”, explica o médico Salim Amed Ali, autor de diferentes estudos
sobre doenças ocupacionais para a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de
Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), do Ministério do
Trabalho e Emprego. A perda da identidade não é permanente. Com o tempo,
as digitais voltam se a pessoa se afastar da atividade.
Sobrevivência
O médico fez pesquisas específicas sobre a saúde de trabalhadores de unidades industriais de processamento de castanhas de caju e diz que a atividade pode ser considerada insalubre. No caso em questão, em que a produção é totalmente artesanal e as famílias dependem do trabalho para sobreviver, ele destaca quão contraditória é a situação. “A subsistência está calcada em condições de trabalho inviáveis. Para viver, o sujeito precisa se submeter a condições inaceitáveis e as crianças acabam sacrificadas. Não dá para aceitar isso em pleno século 21”, afirma.
O médico fez pesquisas específicas sobre a saúde de trabalhadores de unidades industriais de processamento de castanhas de caju e diz que a atividade pode ser considerada insalubre. No caso em questão, em que a produção é totalmente artesanal e as famílias dependem do trabalho para sobreviver, ele destaca quão contraditória é a situação. “A subsistência está calcada em condições de trabalho inviáveis. Para viver, o sujeito precisa se submeter a condições inaceitáveis e as crianças acabam sacrificadas. Não dá para aceitar isso em pleno século 21”, afirma.
Um menino e uma adolescente se revezando ao redor da mesa. A garota é
quem cuida do fogo, alimenta a lata improvisada com cascas de castanha e
controla as labaredas espirrando água com uma garrafinha. A fumaça sobe
e cobre seu rosto. Um cachorro dorme perto do fogo. Eles estão nessa
atividade desde a madrugada, começaram às 3 horas. É preciso começar
cedo, no sol do sertão nordestino, não dá para continuar com o calor de
meio-dia.
O garoto tem 13 anos e, assim como a irmã, cursou até a quarta série
do ensino fundamental mas tem dificuldades para ler e escrever. Largou a
escola na quinta série porque teria de viajar uma hora de ônibus para
ir até uma que atende alunos mais velhos, localizada na área urbana de
João Câmara – trabalhar e estudar ao mesmo tempo já é difícil quando a
escola é perto; quando não há escolas perto, impossível. Ele quebra as
castanhas com agilidade, seus dedos fininhos seguram, selecionam e
escapam das pancadas duras.São poucas as palavras, ambos trabalham em silêncio e as respostas são curtas. Na mesa vizinha, os mais velhos reclamam da falta de água – a que a prefeitura tem entregue para abastecer as cisternas do bairro é salobra. “Dá dor de barriga e aí a gente tem de comprar água de garrafa, vê se pode”, conta uma mulher de 63 anos, que já passou fome e acha melhor que as crianças trabalhem com castanhas do que colhendo algodão ou roçando pasto para o gado, atividades que exerceu quando criança.
Em outra unidade de produção, uma família adapta o ritmo à existência de um recém-nascido. Uma adolescente, também de 15 anos, se reveza com o marido de 18 anos e sai, de tempos em tempos, para amamentar o bebê. “Eu lavo as mãos bem antes de pegá-lo, para não sujá-lo”, conta a mãe, antes de fazer uma pausa às 4 horas. O trabalho costuma ir até as 11 horas e, à tarde, todos trabalham tirando a pele fininha.
O emprego de crianças na quebra da castanha de caju está incluído na
lista de piores formas de trabalho infantil, ao lado de atividades como
beneficiamento do fumo, do sisal e da cana-de-açúcar. A situação a que
estão submetidas as crianças de João Câmara (RN) não chega a ser
novidade. A auditora fiscal do trabalho Marinalva Cardoso Dantas,
coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e
de Proteção ao Adolescente Trabalhador, tem realizado sucessivas ações
de fiscalização, denunciado a situação e cobrado soluções. “Não dá para
aceitar que as crianças continuem nessa situação, mas não basta
reprimir, é preciso oferecer alternativas”.
Além de identificar as crianças e reunir informações para relatório a
ser entregue ao Conselho Tutelar da cidade, ela também tem procurado
cobrar providências por parte da prefeitura sobre a situação das
famílias. Os programas sociais são considerados insuficientes pelos
moradores, que reclamam da atuação do poder público. “Sabemos do que
está acontecendo, mas até agora não conseguimos avançar”, admite Maria
Redivan Rodrigues, secretária de Assistência Social e primeira-dama de
João Câmara, que promete solucionar o problema em um ano, até setembro
de 2014. O Brasil se comprometeu a erradicar as piores formas de trabalho infantil até 2015, mas, mesmo com denúncias, situações com a de João Câmara persistem.
Em 24 de fevereiro de 2012, o promotor Roger de Melo Rodrigues, do
Ministério Público Estadual, abriu o Inquérito Civil nº
06.2012.00003777-7 após denúncias. “Ele disse que ia processar as
famílias, tentou proibir as pessoas de trabalhar, deixou todo mundo
apavorado. Foi muito ruim”, diz Ivoneide Campos, presidente da
Associação Comunitária do Amarelão. “A fumaça faz mal, a gente sabe, mas
as famílias não querem mudar o método com que sempre trabalharam. E não
adianta forçar, tem de transformar em querer, ajudar na busca de
alternativas”, defende.
Procurado para comentar a reclamação, o promotor negou, em nota, que
sua atuação tem sido meramente repressiva. Ele diz que “os problemas
relacionados à queima de castanha, tais como impacto ambiental, danos à
saúde dos moradores e trabalho infantil, não têm passado desapercebidos
do Ministério Público Estadual” e que “em vez de buscar a repressão de
delitos relacionados ao caso, esta Promotoria tem priorizado o diálogo
com a respectiva comunidade, já havendo sido realizadas duas reuniões no
local com todos os interessados e representantes de órgãos municipais,
estaduais e federais, objetivando a construção de um consenso para
solucionar o caso”.
O promotor reclama, porém, que embora “busque uma resposta adequada e
legítima aos problemas, tem enfrentado alguma resistência relacionada
ao costume já enraizado, da parte de algumas famílias locais, de
proceder à queima de castanhas ao alvedrio dos respectivos danos
decorrentes, o que não impedirá uma atuação isenta e efetiva para a
resolução do caso”.
Potiguar
Entre as famílias que dependem do processamento de castanhas de caju para sobreviver estão as de um assentamento localizado na região de índios Potiguar, um dos poucos núcleos remanescentes dessa etnia que no passado povoou o estado inteiro. Os ganhos são mínimos. A castanha crua é comprada de pequenos produtores da região de Serra do Mel. Um saco de 50 kg rende, em média, 10 kg de castanha processada. As famílias contam que ganham de R$ 30 a R$ 100 por semana, vendendo a produção a intermediários que revendem em feiras e mercados de cidades.
Entre as famílias que dependem do processamento de castanhas de caju para sobreviver estão as de um assentamento localizado na região de índios Potiguar, um dos poucos núcleos remanescentes dessa etnia que no passado povoou o estado inteiro. Os ganhos são mínimos. A castanha crua é comprada de pequenos produtores da região de Serra do Mel. Um saco de 50 kg rende, em média, 10 kg de castanha processada. As famílias contam que ganham de R$ 30 a R$ 100 por semana, vendendo a produção a intermediários que revendem em feiras e mercados de cidades.
“Tentamos identificar quem lucra com isso, mas é um sistema muito
primitivo. As indústrias organizaram a produção e estão processando
diretamente as castanhas, não identificamos nenhuma envolvida. Os
intermediários são pequenos comerciantes que adquirem o produto
diretamente com as famílias”, explica o auditor fiscal José Roberto
Moreira da Silva.
Criatividade na busca por soluções para as famílias não falta. Nilson
Caetano Bezerra, do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da
Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador Aprendiz, por exemplo,
sonha em fazer parcerias com as empresas de produção de energia eólica,
que fazem multiplicar o número de torres de geração na região, para
empregar adolescentes como aprendizes. E em providenciar máquinas para
que os adultos não tenham de manusear as castanhas torradas.
Experiências com mecanização já aconteceram, mas o descasque manual
ainda é o preferido porque a taxa de desperdício é menor.
Em fevereiro, o juiz Arnaldo José Duarte do
Amaral, titular da 9ª Vara do Trabalho de João Pessoa, visitou a
comunidade e também encontrou as crianças trabalhando na produção de
castanhas. Ele escreveu um artigo
sobre a questão e, desde então, tenta articular soluções e envolver
mais interessados em resolver o problema. “Quando estive lá como juiz,
me perguntavam se ia prender alguém. Não é esse o papel do judiciário, o
objetivo não é prender ninguém, é achar solução”, diz, defendendo a
formação de cooperativas e mecanismos de economia solidária como o
melhor caminho para erradicar o trabalho infantil e melhorar a condição
de trabalho dos adultos. “A gente tenta corrigir essas questões há
séculos, sem sucesso. Não bastam ações repressivas, que vão além de
tentar punir.”
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